ONU denuncia violações sistêmicas de direitos na Turquia após operação de Erdogan

Um novo relatório compilado pelo grupo holandês de direitos humanos Stichting Justice Square detalhou um padrão de violações de direitos humanos na Turquia após a tentativa de golpe em 15 de julho de 2016, reconhecido por diversos órgãos das Nações Unidas entre 2017 e 2024.
O documento de 94 páginas, intitulado “Decisões de Violação dadas pelas Nações Unidas após 15 de julho de 2016”, revisa mais de 40 decisões do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária, Comitê de Direitos Humanos e Comitê Contra a Tortura. Ele conclui que a Turquia violou repetidamente obrigações internacionais sob o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Contra a Tortura, mesmo sendo parte de ambos os tratados.
O relatório, elaborado por advogados baseados na Holanda, organiza as decisões da ONU em ordem cronológica, mostrando um padrão consistente de detenções arbitrárias, falta de devido processo, desaparecimentos forçados e uso de tortura.
A maioria dos casos envolveu civis, jornalistas, acadêmicos e juízes acusados de participar do movimento Hizmet, chamado pelo governo de Fethullahist Terrorist Organization (FETÖ), responsabilizado pela tentativa de golpe. O movimento, inspirado pelo falecido clérigo Fethullah Gülen, é crítico ao presidente Recep Tayyip Erdogan, e até hoje o governo turco não apresentou provas verificáveis de ligação direta do movimento com o golpe. Ações tomadas por Erdogan, o chefe do estado-maior e o chefe da Organização Nacional de Inteligência na noite do golpe têm sido alvo de questionamentos da oposição, que argumenta que os eventos foram usados para justificar uma repressão política em larga escala.
O Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária da ONU, composto por especialistas independentes, classificou as detenções pós-golpe em várias categorias de arbitrariedade: Categoria I refere-se à privação de liberdade sem base legal; Categoria II, devido ao exercício de liberdades fundamentais; Categoria III, por falha em respeitar garantias internacionais de um julgamento justo; Categoria IV, por discriminação política ou de opinião.
Em quase todos os casos turcos revisados, o grupo encontrou violações em mais de uma categoria, citando consistentemente violações dos Artigos 9 e 14 do pacto, que garantem direito à liberdade, presunção de inocência e julgamento justo perante um tribunal independente.
Segundo órgãos da ONU, decretos de emergência foram usados após o golpe para justificar detenções prolongadas sem acusação formal, evidências secretas e acesso restrito a advogados. Muitos detidos foram privados de contato com familiares e mantidos sob condições consideradas “desumanas e degradantes”.
O relatório aponta que os especialistas da ONU identificaram repetidamente negação de direitos processuais básicos. Observou-se que suspeitos eram mantidos por semanas sem saber as acusações, com julgamentos baseados em testemunhas anônimas e, frequentemente, no uso suposto do aplicativo ByLock. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já decidiu em diversos casos que o ByLock foi usado como única ou principal prova para condenar milhares de pessoas, sem exame das circunstâncias individuais e sem comprovação de intenção, contrariando padrões legais básicos.
Num dos casos avaliados, as autoridades turcas não apresentaram fundamento legal para a detenção de um policial por mais de seis meses, violando seu direito de ser informado rapidamente das acusações. A mesma lógica apareceu em dezenas de outros pareceres sobre jornalistas, funcionários e acadêmicos.
O Comitê de Direitos Humanos da ONU concluiu que a Corte Constitucional da Turquia não provedora solução efetiva aos detidos, enfatizando que a revisão judicial deve ser “genuína e rápida”. Também considerou que manter pessoas detidas sem apresentá-las a um juiz por mais de 10 dias viola os requisitos do pacto.
O relatório também analisa casos em que o Comitê Contra a Tortura tratou de nacionais turcos extraditados ou sequestrados no exterior a pedido da Turquia, resultando em violações do princípio internacional de não-devolução, que proíbe enviar alguém a um país onde há risco real de tortura. Foram citados exemplos no Marrocos, Paquistão e Azerbaijão, com responsabilidade conjunta dos governos envolvidos.
Especialistas da ONU ainda documentaram alegações contínuas de tortura e maus-tratos sob custódia policial e em prisões preventivas, com denúncias de espancamentos, ameaças e pressão psicológica para obter confissões.
Outro ponto de preocupação foi a erosão da independência judicial. Vários juízes e promotores detidos por “deslealdade” revelaram, segundo a ONU, o controle executivo sobre o judiciário, incompatível com a separação de poderes exigida pelo direito internacional.
O grupo também concluiu que detenções por cobertura midiática ou suposta simpatia a organizações banidas violam o princípio de legalidade, advertindo que leis antiterrorismo vagas têm efeito inibidor sobre a imprensa.
Um caso marcante envolveu o general Akın Öztürk, ex-comandante da Força Aérea, cuja prisão foi considerada ilegal pela ONU em agosto de 2024. O governo o acusa de liderar o golpe, mas a ONU concluiu não haver provas credíveis e que sua prisão violou garantias legais internacionais. Pediu-se sua libertação imediata, compensação e investigação dos envolvidos em seu tratamento, que incluiu tortura e maus-tratos.
As decisões da ONU, embora não vinculantes, têm peso moral e diplomático, pedindo reiteradamente à Turquia para libertar detidos, indenizar as vítimas e alinhar as leis nacionais aos padrões internacionais de direitos humanos.
As conclusões também impactam outros países: órgãos da ONU advertiram que terceiros estados não devem cooperar na abdução ou deportação extraterritorial de cidadãos turcos, registrando múltiplos casos em que terceiros países foram considerados cúmplices.
O relatório conclui que já existe um corpo substancial de jurisprudência sobre violações pós-golpe na Turquia por parte da ONU, devendo informar mecanismos internacionais de responsabilização no futuro.
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